10.13.2006
Em banho Maria
Sentou-se na escada e encostou-se ao vão que sempre a amparara em horas menos boas. Era um corrimão longo e de um verde brilhante, apenas mais baço devido às rodas radicais que por ali escorregavam. Ela apenas escorregava de braços, abraçando-se ali à espera de alguém para a confortar. Quando as lágrimas lhe escorriam pelo rosto, daquela forma, grossas e brilhantes, era naquele lugar que se recostava. Sentia-se apoiada e acompanhada, por si mesma. A pessoa que vira nascer em si, desde há um quarto de século, transformou-se hoje numa marioneta de pedra. A sua cabeça deambulava do triângulo ao preâmbulo, como quem fala de cabeça e pés… O olhar que ela esperava ver espelhado no seu, aquele olhar de sempre, não tinha ainda surgido e passavam dias. Não sabia quantos, a sua nova vida perecida atirou-a para longe dos números e das palavras. Já se despediu dentro de si, tantas vezes, dele, que nunca pensou sentir-se insana daquela forma.
Fui dar com Maria numas escadas sujas e gastas diante do corrimão verde. Perguntei-lhe se precisava de ajuda, se queria companhia. Sempre conhecera Maria como a miúda alegre de ar vivo que rodeava aquela zona. Penso que morava por lá, mas nunca me questionara muito acerca da sua presença. Agora, que a vejo ali, abandonada no vão da escada, dirigi-lhe estas palavras.
Maria ficou calada como estava, entre soluços interiores e lágrimas que corriam em direcção à boca. O coração parecia ter fugido para outro lado, para uma qualquer esquina de um beco sem saída…. Como se me lesse os pensamentos disse-me “Há qualquer coisa que foi com ele e não sei onde eles estão…”
Encostei-me então naqueles degraus sujos, à espera que algo lhe aparecesse no peito e a fizesse levantar. Continuou ali, dias após dias…
Voltei a encontrar Maria no outro dia, enquanto passeava num jardim de Lisboa. Tinha feito a longa viagem do eléctrico 28 e deparei-me com ela. Vestia preto. Um luto que a enchia de ponta a ponta. Por dentro, via-se, estava da mesma côr soturna; vestia igualmente um luto lancinante. Peguei-lhe a mão e disse-lhe que havia vida para além do lugar onde o seu coração se perdera... Não me ouviu. E pela última vez vi-lhe o sorriso desenhado no rosto, os gestos leves como outrora.
Lisboa é uma cidade linda, não existe miradouro como aquele que repousa junto ao Tejo. Hoje Maria descansa nele. Perdeu-se no Tejo para a eternidade. Esperemos que não vista luto e que tenha encontrado o seu coração…
Até sempre Maria, digo-lhe eu, todos os dias que passam pelo vento em cada esquina...
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5 comentários:
Gostei. Senti-me.
Foi bom este "regresso"...
Há sempre qualquer coisa que perdemos com quem parte...
Beijo
Deep, como sempre, embora não tanto Purple…
Beijos
Boas Inés.
A Maria pode também ser um fantasma solitaria.Daqueles que nós nos confessamos quando não temos nenhum Humano perto do nosso coração.Beijo.
Só vi este texto hoje, lê o meu, que coincidência...
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