6.01.2005

Onde Desagua O Rio




O teu olhar ficará sempre preso no meu, onde quer que ande, para onde for... Quando me deitar estarei a olhar os teus olhos fundos, de cor esverdeada. Quando me levantar olharei os teus olhos que ainda olham para dentro, deambulando pelos sonhos que acordado esqueces. Seguirei as ruas do meu caminho com os olhos estranhos dos transeuntes espelhando os únicos que já observara, que verdadeiramente conhecera. Já tinha visto tantos olhares, de tantas cores – verdes, azuis, cinzentos, de homens, mulheres, pai, mãe – de tantos e tantos amores, mas nenhuns se igualaram àqueles.


Sentada aqui, passados tantos anos desde o nosso encontro furtivo, relembro as poucas palavras que cruzámos naquele miradouro de onde se avistava a imensidão de uma cidade que se perde dentro de água. Sombras verdes criavam monstros amigos pelo chão de terra batida onde alguns pássaros se amealhavam, passando imunes à nossa presença. Vestias uma camisa azul clara e um blazer escuro, com um símbolo que não defini. Não me importava. Apenas me fixei nos teus joelhos esfolados, deixando passar a imagem clara que serias rebelde com causa, e, milésimos de segundos depois, nos teus olhos que pareciam uma continuação do rio que servia de cenário.


Não mais esquecerei a cara de espanto que me deitaste, fazendo trespassar o meu vestido novo assemelhado ao Jardim da Parada, onde todos os dias me sentava a dar de comer aos pombos. Na altura ainda gostava de pombos, recordo-me agora com algum desprazer. Senti então o que seria o tal fogo que arde sem se ver pela primeira vez. Ou talvez não fosse a primeira vez, mas esta será a que me recordo.


Outros miúdos, guerreiros pela causa dos esféricos, continuaram a sua batalha; meninas de vários jardins saltavam sem parar na corda que parecia fazer andar o Mundo. Como uma manivela rodopiavam com toda a força que conseguiam, enquanto outras tantas davam saltos sem parar... O meu Mundo, no entanto, parou num segundo. A minha corda parara de girar. Todos fugiram de a balançar aquando do vislumbre "dele".


Até hoje desconheço o seu nome. Terá sido um encontro fugaz que, acredito, do alto dos meus 47 anos ter sido premeditado por alguém. Ainda agora quando passeio no Jardim do meu vestido, ou no miradouro onde se vislumbra a ponta da cidade, procuro a parte do rio que lá falta.

Até ao dia...



By Xein

2 comentários:

trigolimpofarinh@mparo disse...

… Até ao dia em que a vi a olhar uma montra de roupas femininas. Admirava os manequins como se visse esculturas trajadas no lugar de bonecos. Parei à sua frente. Ela olhou-me como se não acreditasse. Sorriu levemente e eu comentei algo: " Mais um marco sem palavras, mais uma intemporal obra-prima, onde qualquer letra é vã e soa a pouco pois está demais… ADOREI!!! Ah, e como se não bastasse, sem falar desses olhos inesquecíveis, há mais outra obra, que além de prima, será certamente a primeira entre muitas…". Falei mais algumas coisas que ela de certeza que não consegui decifrar, muito menos tentou entender. O seu pensamento estava preso na minha imagem reflectida na vitrina. Escrevi num papel o meu telefone. “Não...” – disse ela, e eu recuei. Continuou, esticando o braço, e eu voltei à posição original, como se nada tivesse sido dito. Ela dobrou o papel sem reparar que o meu nome não estava lá, beijou-me no canto da boca e… foi à sua vida.

Rui F Santos disse...

muito catita este texto...
desculpa lá a expressão, mas gosto de catita.
fica bem.
saudades
Rui